Da janela do meu apartamento, não obstante a especulação imobiliária acelerada, ainda vejo um pouco do mar e vejo uma ponte que facilita a vida daqueles que desejam seguir em direção à praia. Por cima passam os automóveis e por baixo passam as canoas. Como forma de agradecimento por essa visão privilegiada, fui buscar no dicionário o significado de ponte.
Encontrei no minidicionário Houaiss que ponte é “uma construção que liga dois pontos separados por curso de água ou depressão de terreno”. No Aurélio, encontrei vários tipos de ponte, cuja definição é ser elemento de ligação, entre pessoas ou coisas. Há muitos tipos de ponte, sobre águas, em circuito elétrico, em prótese dentária, na coberta de um navio, no sistema nervoso central. Além dessa variedade de pontes, o Aurélio fala de ponte aérea, ponte afogada, ponte branca, ponte de capacitância, ponte de comando, ponte de condutividade, ponte de safena e outras pontes.
Quando busquei outros componentes ligados com os sentimentos e a cognição, lembrei que as pessoas que residem em cidades que são cortadas por rios, em geral, gostam muito das pontes. Mesmo que não conscientemente, essas populações interessam-se pela construção, pela conservação e pela história das pontes. Costumam falar das mesmas com carinho e, às vezes, com paixão. Em alguns casos, as pontes são motivo de disputas políticas porque se entende que elas podem trazer prestígio para os dirigentes que as constroem. Para essas pessoas, uma ponte é sempre mais do que uma simples ligação entre duas margens de um rio. No campo da poesia, a definição de ponte foi brilhantemente contemplada por Lenine, na música A Ponte, quando ele afirmou que:
“A ponte não é de concreto, não é de ferro
Não é de cimento
A ponte é até onde vai o meu pensamento
A ponte não é para ir nem pra voltar
A ponte é somente pra atravessar….”
Diante de tão exaustivas definições, eu exagero na ousadia para dizer que gostaria de ver, nos dicionários, o registro de uma outra ponte que está na gênese de todos os rios. Refiro-me à Ponte de Hidrogênio. É um termo técnico, mas quem estudou química no ensino médio pode identificar o que estou dizendo. A molécula de água é composta de um átomo de oxigênio e dois de hidrogênio. Qualquer que seja o estado ou a origem da água, ela tem essa mesma composição. O átomo de hidrogênio é muito pequeno e o fato de ser pequeno faz com que o seu núcleo possa se espremer em lugares que outros átomos maiores não alcançam.
A organização da molécula de água é tal que constitui uma estrutura angular, em forma de V, sendo que o oxigênio ocupa a posição do vértice e os dois hidrogênios ficam nas extremidades do V. A extremidade onde fica o oxigênio é uma extremidade negativa porque o oxigênio termina atraindo a maior parte do elétron do hidrogênio. Enquanto isso a extremidade da abertura do V resulta positiva. O fato da molécula de água ter uma extremidade mais negativa e outra mais positiva é uma coisa muito importante para que a água se apresente nas formas que nós conhecemos. Essa bipolaridade cria condições para que duas moléculas de água possam ser agregadas uma a outra.
A ligação especial que ocorre entre duas moléculas de água mediada por átomos de hidrogênio é chamada de Ponte de Hidrogênio. A Ponte de Hidrogênio é uma das ligações químicas mais importantes do mundo pois os seus efeitos abrangem desde a construção do código genético até a dureza da matéria, passando pelas próprias propriedades da água. As moléculas da água são muito leves e se não fosse pelas pontes de hidrogênio que existem entre elas a água seria um gás. Ao invés de nós vermos oceanos, rios e poças de água, nós teríamos um ambiente feito totalmente com a água no estado gasoso. Portanto, é muito importante o fato de que as moléculas de água possam ser ligadas entre si e essas ligações ocorram através das Pontes de Hidrogênio.
As mesmas Pontes de Hidrogênio que fazem com que as moléculas fiquem ligadas entre si e não na forma de gás, também servem para definir a estrutura do gelo quando a água vai para o estado sólido. Quando a temperatura diminui a capacidade de vibração das moléculas também diminui e nesse caso quando essas moléculas de água diminuem suas vibrações, ocorre uma ligação através das Pontes de Hidrogênio e essa ligação é tal que a estrutura formada tem uma densidade menor do que aquela de quando as moléculas de água estão deslizando umas sobre as outras. Isso tem uma importância muito grande para a vida porque é exatamente o fato dessa estrutura do estado sólido ter uma densidade menor do que no estado líquido que faz com que o gelo flutue. O gelo tem uma densidade menor pelo fato do arranjo químico da molécula de água resultar num volume maior enquanto o peso molecular se mantém. O fato do gelo flutuar e manter a água abaixo dele no estado líquido é um fator de preservação da vida. Se não fosse assim, quando houvesse o congelamento de um lago, vida seria destruída.
Quando o gelo derrete a estrutura aberta se desorganiza e o líquido mais denso se forma. Quando a água congela a estrutura volta a se organizar formando a camada na superfície e é essa camada de gelo da superfície que protege a vida na água que fica abaixo dela. Para nós que vivemos numa região quente, isso pode parecer sem importância, mas as pessoas que vivem nas regiões frias acompanham essas mudanças anualmente. O leitor pode ter achado esquisito um artigo que iniciou descrevendo uma paisagem simples ter evoluído para falar de química, mas a intenção era exatamente essa. A ideia é lembrar que o estudo de ciência pode ser útil até para se admirar um rio. Afinal, a ciência é uma forma de ver o mundo.